segunda-feira, 29 de abril de 2013

TEXTO PARA O ENCONTRO 01

A persistência da memória (1931), de Salvador Dalí.
 

Um costurar entre o sujeito, o criar e o mundo contemporâneo. 


"..O veneno do vazio nos mata pela indecisão,

 ou nos ressussita pela criatividade de solução."

Valéria Domanski de Medeiros

Por Daniele Spada 

O vazio no começo de qualquer trabalho que envolve nossa capacidade criativa nos assusta, para ser mais assertiva, nos apavora. Gera dúvidas que não conseguimos digerir e nos paralisa. Acreditamos que não temos nada dentro de nós, um branco, um hiato, e o mundo contemporâneo nos leva à uma caixa de pandora, a internet. Nela acreditamos encontrar algo para por no vazio e por mais que naveguemos e nos surpreendamos com milhares de possibilidades de soluções, o vazio ainda está ali. Como entrar nessa roda da morte: A criatividade?

A criação nunca é uma questão somente externa, é questão do sujeito.

“Consideramos a criatividade um potencial inerente ao homem, e a realização desse potencial uma de suas necessidades... O criar só pode ser visto num sentido global, como um agir integrado em um viver humano. De fato, criar e viver se interligam.” (OSTROWER, 2004, pág. 5.)

O fato do homem desde a Pré-História desejar se expressar criativamente, não se restringe às pinturas rupestres, mas em sua totalidade, no seu modo de solucionar problemas e conflitos entre sua existência e o meio que estava inserido. Entre o homem e o meio. Inserido na cultura.

Outra ideia é a de que criar corresponde a um formar, um dar forma a alguma coisa...no próprio modo de se estabelecerem certas relações mediante as quais vai surgir para nós o sentido da forma, dos limites e do equilíbrio, o fator cultural valorativo atua sobre as configurações individuais; sendo assim o impacto da contemporaneidade tem influenciado bruscamente o nosso ato de formar e fazer. A aceleração é tão forte e tão generalizada que até mesmo os mais "ligados" encontram-se, em graus diversos, ultrapassados pela mudança (Lévy,1999) e é neste ponto que a inteligência coletiva se faz necessária no ato de criar, através das trocas de ideias, experiências e observações que possibilitam amenizar os conflitos advindos do movimento tecnossocial. Hoje, quando nos vemos em qualquer situação de dúvida, recorremos ao Google, seja na escrita, no significado ou no desconhecido. A crença que o saber está a disposição de qualquer um, a qualquer tempo por vezes nos acomoda e o trabalho é substituído por um compilar virtual. A união de partes existentes para criar um novo todo organizado é da ordem da criatividade, mas o se acomodar com tal "técnica" retira de nós a espontaneidade e liberdade no processo criativo, entendendo a espontaneidade como ser coerente consigo mesmo.

Admite-se que nesse tempo, o criar esteja sendo reprimido, manipulado, massificado, enrijecido. O homem contemporâneo, colocado diante de múltiplas funções que deve exercer, pressionado por múltiplas exigências, bombardeado por um fluxo ininterrupto de informações contraditórias, em aceleração crescente que quase ultrapassa o ritmo orgânico de sua vida, em vez de se integrar como sujeito inserido na cultura, aliena-se de si, de seu trabalho e de suas possibilidades de criar. (OSTROWER, 2004).

Em seus sonhos encontra a liberdade que deixa de lado no dia-a-dia. Neles, o inconsciente tem liberdade de produzir imagens, mesmo que inversas, contraditórias e enigmáticas. As imagens parecem flutuar, não temos domínio sobre elas, vão tecendo histórias que muitas vezes nos surpreendem pela sua complexidade e falta de lógica, assim deveria ser nosso processo criativo, dando espaço ao "acaso". 

No sonho, não há domínio ou censura para que essas imagens possam dançar livremente em um magnífico ato criativo do inconsciente.  A censura, então, com a intensão de evitar o desprazer, decidirá se uma ideia surgida na mente pode ou não chegar a consciência.  Estabelecendo um paralelo entre a censura e as críticas e julgamentos durante o processo criativo, entendemos que tais procedimentos atrapalham o fluir do ato de criar.  

O processo criativo vai fazer uso da ‘memória psíquica’. Em nossa experiência vivencial estruturam-se configurações de vida interior, formas psíquicas, que surgem em determinados momentos e sob determinadas condições, e são lembradas, 'percebidas' em configurações.

Pelos processos ordenadores da memória, articulam-se limites entre o que vaza de um lembrar psíquico, o que lembramos dos fatos, o que pensamos, imaginamos e a infinidade de incidentes que passam pela nossa vida.

Nossa memória seria, portanto uma memória não-factual. Seria uma memória de vida vivida, com novas interligações e configurações aberta às associações (Ostrower, 2004).

Na era tecnológica, as memórias das máquinas, têm evoluído sempre em direção a uma maior capacidade de armazenamento, maior rapidez de acesso e confiabilidade a fim de não perdermos dados importantes, armazenamos em suportes de gravação e leitura automáticas dados que queremos guardar e compartilhar por meio da transmissão de informações por todas as vias de comunicação imagináveis (Lévy,1999), mas esta serve apenas como local para guardar informações, distante do conceito de memória do homem que interliga o ontem ao amanhã e que além de renovar um conteúdo anterior, a cada instante relembrado constitui uma situação nova e específica. Não guardamos dados, nós os reconstituímos.

E qual o papel da memória no processo criativo? Fugir da alienação de si e recolher das experiências anteriores a lembrança de resultados obtidos, que orientará possíveis ações no processo criativo. As intensões que se estruturam junto com a memória nem sempre serão conscientes, fazem-se conhecer no curso das ações como uma espécie de guia aceitando ou rejeitando certas opções e sugestões contidas no ambiente dependendo de escolhas que se farão inconscientemente.

As associações provindas de áreas inconscientes do nosso ser, compõem a essência de nosso mundo imaginativo. Espontâneas, elas afluem em nossa mente com uma velocidade extraordinária, e se não forem cerceadas por uma barreira da crítica ou da censura, geram um mundo experimental, mágico, de um pensar e agir em hipóteses - do que seria possível, nem sempre provável. Num instante podemos manipular fatos, eventos, pessoas, objetos, sem que eles existam fisicamente, apenas na esfera mental da criação. Assim como no mundo virtual, onde as imagens, textos, músicas, são manipuladas e se encontram num tempo do possível como o real, só lhe faltando existência.

As associações são extremamente importantes nesse processo, onde necessitamos sair do lugar comum, suspender nossas certezas para que um novo re-conhecimento nos motive à novas indagações, novas estruturações para um novo recomeço, nesse processo dinâmico do ato de criar. 

Nossos olhos brilham no momento que apreendemos-ordenamos-reestruturamos-interpretamos a um tempo só, ou seja, temos um insight.

A ideia, o processo, as desconexões, tudo parece fazer sentido e o processo criativo passa a ficar mais claro e menos doloroso, as incertezas vão dando espaço ao querer não ter certezas, e as dúvidas passam a ser as melhores aliadas nessa jornada de experimentações.

Damos espaço para trocas de informações e permitimos novos olhares sobre o que estamos elaborando, propiciando um pensar coletivo. Neste ponto as pesquisas na internet, já não mais nos orientam, pois nossa ordenação interior pulsa e exerce sobre nós uma força maior e conseguimos usar o espaço virtual não como uma base sólida de resultados, mas como uma plataforma de possibilidades e divergências que nos fazem questionar e nos recolher novamente, para de lá emergir um impulso criador.

A cobrança com o resultado dá espaço ao prazer na elaboração, o imediatismo do mundo contemporâneo é deixado de lado, não sabemos quanto poderá durar nem onde chegaremos, e somente trabalhando, a necessidade de novas buscas se tornam emergentes e sentimos que o momento final do trabalho se aproxima.

O sujeito do processo criativo detém o saber sobre a hora de finalizar o trabalho no instante em que a resolução reflete seu equilíbrio interno. Isto não quer dizer que o trabalho esteja finalizado no sentido de estar resolvido, ainda podem perdurar perguntas que não se esgotarão apenas nessa etapa do processo.

Uma nova caminhada se inicia, e com ela questões remanescentes dessa etapa se unirão às novas necessidades de um estado de tensão, de uma orientação interior, que não conhecemos.

Um caminho de experimentações e vivências onde tudo se mistura e se integra. O "pisar em ovos" torna-se divertido e só encontrando, saberá o que buscou. Criar livremente, compreender no sentido mais lúcido e amplo o que é ser livre: Ter entendimento de si, uma aceitação de si, ocupar seu espaço de vida.

É nesta hora que o vazio se torna nosso aliado, e nas tentativas de preenchê-lo é que se configura o processo criativo. Ele vai estar sempre lá nos impulsionando, nos movimentando, porque esse desejo de completude nunca será satisfeito.

 

Texto elaborado a partir do livro Criatividade e Processos de Criação da Fayga Ostrower, num costurar entre o sujeito, o criar e o mundo contemporâneo.

 

Bibliografia 

 

LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34,1999.

LÉVY, Pierre. O que é virtual?. São Paulo: Editora 34,2009.

LONGO, Leila. Linguagem e psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

OSTROWER, Fayga . Criatividade e processos de criação. Rio de Janeiro: Editora Vozes,  2004.

 

2 comentários:

  1. Fantástico, estava precisando refletir, não solucionou, mas além de respostas direcionou e incentivou. Obrigada Dani, vc sempre nadando em águas profundas...grande admiração e grande beijo.

    Marisa (sua ex aluna)

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